Chegara à conclusão que "os olhos foram maiores que o estômago", metaforicamente exemplificando a dificuldade em manter três carros e uma moto num país longínquo e com hábitos, leis e recursos, tão diferentes dos que eu conhecia em outra realidade. O custo doeu, o tempo se fez escasso e as alternativas disponíveis eram todas demasiado custosas para manter uma pequena frota germânica rodando adequadamente, e consequentemente assumi a alternativa de reduzir a frota. Elke, a tão simpática Trabant Kombi, foi escolhida para mudar de dono.
O Frank (Wartburg) foi (de novo) para a oficina, novamente por motivo simples mas que requeria mão de obra e espaço especializados, para ajustar a ignição, limpar carburador e substituir o tanque com ferrugem por outro em melhor estado; o Eusébio (Opel Rekord) mostrara que seu motor dara o "canto do cisne" e estava em últimos dias de vida pré-retífica. E a Elke, ah, a Elke... sua ignição teimava em seu comportamento temperamental, e também por ter menos de 30 anos ela não podia trafegar em qualquer lugar em Berlim, por não possuir o "selo verde" de baixas emissões - algo impossível num carro com motor dois tempos; dirigí-la nas estradas era possível mas também um bom exercício de paciência, já que não passava dos 100 Km/h, sem antes ter muito sofrimento para atingir essa velocidade. Então, mesmo com o coração sofrendo a cabeça (e o bolso) falaram mais alto e a anunciamos, por aproximadamente o mesmo que ela me custou.
Em menos de uma semana houve uma porção de interessados que ligaram e mandaram mensagens - desde especulativas oferecendo uma ninharia por ela, até uma pessoa que quis vê-la. Combinamos para o sábado, e logo a avisei que iria buscá-la no estacionamento - intimamente torcia para que ela funcionasse direito e que a ignição se comportasse adequadamente. Sexta-feira a noite, fui ao estacionamento, limpei as velas, mexi nos cabos e... nada dela ligar. Fiquei irritado, falei que a venderia por qualquer valor se ela continuasse assim e... de novo, nada. Respirei fundo, olhei para ela e disse: "Elke, está bem. Se você funcionar direitinho eu não te vendo mais". E ela ligou como se nada tivesse acontecido... nem tive tempo de ficar pensando muito a respeito desse comportamento - fechei o capô e segui viagem até o prédio onde moro. No caminho, o carburador insistia em não querer sustentar marcha lenta, e a fumaça azulada proporcionava um perfume pouco apreciado pelos motociclistas e motoristas dos carros conversíveis que compartilharam conosco do trânsito do centro da cidade. Ainda assim, ela atraía sorrisos e acenos das pessoas, que ou viveram na DDR ou então se simpatizam com os Trabant.
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Nada como um bom banho... |
No sábado, preparativos para a venda - uma boa ducha, uma aspiração interna, separar as peças de reposição que a acompanhariam caso passassem para outras mãos... e esperar pelos potenciais compradores. Conversamos, afinal a possibilidade de seguirmos por estradas separadas era real. Ela parecia saber disso, e ainda assim se sentir feliz por tudo que passou até o momento. Estava bem, e mantinha aquela carinha rabugenta e ao mesmo tempo sorridente que só um Trabant sabe fazer. Enquanto removia umas poucas manchas de graxa na pintura, via lascas e riscos na sua pintura - "marcas de uma vida que segue", parecia dizer. Saímos do posto, e estacionamos mais uma vez na garagem a qual morou por alguns meses por conta de seus problemas de saúde mecânica - desta vez, porém, estava saudável e tranquila, e ficou contente ao receber uma rápida limpeza no painel e volante, para tirar o pó e oleosidade. Prometi a ela que não a venderia para quem a subestimasse pechinchando além da conta, ou para algum comprador que só quer ficar na moda e a negligenciar. Achava estranho uma mulher ter entrado em contato e tema por ser uma dessas pessoas "da modinha" que não teriam noção que é preciso abastecer com gasolina e óleo 2 tempos na proporção certa, o que condenaria Elke a uma troca de motor ou pior - a se transformar em objeto de exposição em algum restaurante para turistas.
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Hora e meia depois, chegaram os potenciais compradores - a mulher com quem conversara e o esposo dela. Ambos pessoas nos seus 50 e poucos anos, que viveram na DDR e viram os Trabant serem vendidos novos. Eles a viram, admiraram-se ao saber que tenho um Wartburg e uma Schwalbe mesmo não sendo alemão, e gostaram que a Trabant 601 Kombi tinha o nome Elke. Foi feita a proposta - e uma contra-proposta. E fechamos negócio. Neste momento fatídico, estava chegando ao fim este capítulo na história dela e se iniciava uma nova página. Todos pareciam felizes - a nova família de Elke, a Adriana (que vira que a peruinha estava indo para uma família que cuidaria dela com carinho), e a própria Elke que parecia ter se identificado rapidamente com aquele simpático casal e parecia prever muitas aventuras e uma vida melhor.
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Negócio fechado - Elke passaria a partir de então a morar em Potsdam. |
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Uma das várias "cicatrizes de uma vida intensa" da Elke. Ao fundo, a nova proprietária (e tutora) e eu, assinando os documentos. |
Recebi o dinheiro, eles receberam os documentos, olhei para a Elke segurando o choro de uma despedida dizendo "obrigado, minha querida! Tenha uma ótima vida daqui em diante!". No meu imaginário, pareceu-me tê-la visto responder com certa emoção e alegria com um "obrigado! Agora a vida segue. Divirta-se, pois eu certamente irei me divertir muito!".
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E numa nuvem azulada muito leve, Elke partiu para um novo capítulo de sua intensa vida. |
Com um dinheirinho na conta-corrente e um vazio no peito, Adriana e eu fomos almoçar - paguei-lhe a tão esperada pizza que ela tanto me cobrou, o que a animou sobremaneira. O tagliatelle quatro queijos que comi estava muito bom, mas curiosamente não consegui sorrir direito...
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Acho que ela ficou contente... |
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... e enquanto isso, eu me acostumava com a ausência da minha "amiga de Duroplast". |
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É, o tagliatelle estava gostoso... |
Com a partida dela, ganho um fôlego para me dedicar ao Frank e ao Eusébio (além da Schwalbe, a motinho) e consequentemente ter dois carros confiáveis para viagens e trajetos diários. Um dia, quando as coisas estiverem mais estabilizadas e confortáveis, procurarei e comprarei outro Trabant, provavelmente em melhores condições. Fico com a eterna imagem de um carro simples até demais, mas eficiente e simpático, que merece respeito e reverência. Enquanto esse dia não chega, fico com esse porta-copos, como a lembrança que tive a alegria de conhecer a "Elke Wunderbar".
Viel spaß, Elke!
tudo acabou em pizza !!!!
ResponderExcluirBelo relato, Luzão! Parece que o amor às vezes também implica aceitar a separação. Como diria a Giovanna, "Let it go". Força aí! Abraço, Andrea
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