Compartilhando o significado de ter um carro antigo... ou mais de um!

sábado, 26 de dezembro de 2020

Willy e Cirilo juntos - impressões

Comparar um Trabant 601 e um Fiat 126p mostra muito mais semelhanças do que diferenças entre os dois carros. A motorização de ambos já era obsoleta na época do lançamento deles – ambos com motores de dois cilindros refrigerados a ar, capacidade cúbica e potência similares (o motor do Trabant é baseado em dois motores dois tempos da Zündapp, dos anos 30; o conjunto motriz do Fiat 126 era uma pequena evolução do Fiat 500, de 1957) dão conta do recado dentro da proposta dos carros; ambos são pequenos (o Trabant tem praticamente o mesmo tamanho de um VW Up!, para ficar no mesmo padrão de comparação).  Ambos foram feitos para poderem ser reparados pelos próprios proprietários, algo muito comum naqueles lugares e até o meio dos anos 1990 (nota: antes que alguém pense ou mesmo comente “ah, tá veeeendo como as coisas eram ruins no comunismo??”, lembremo-nos que Fusca, Chevette e Fiat 147 não eram assim tão superiores nesses aspectos, tendo limitações e necessidade de cuidados iguais – seja no Brasil, Alemanha (Ocidental), França ou Itália. 

Apesar da foto um tanto escura, dá para notar que o Trabant é ligeiramente maior que o Fiat. 


O pequeno Fiat laranja praticamente some ao lado de um Golf!

Tem mais de um metro de diferença de comprimento entre eles

O Trabant possui motor, câmbio e tração na dianteira, mais adequado para dirigir em condições de neve; já o Fiat 126 tem todo o conjunto motriz na traseira, o que favorece seu uso para vencer aclives e morros. Tanto um quanto outro têm suspensões firmes (e um tanto duras), e conforto ao rodar não é o forte de nenhum deles – o Trabant é mais confortável, mas não é nenhum sofá ambulante. A direção do Fiat é mais precisa e bem mais rápida, tornando-o mais ágil na cidade, mas sem que o Trabant fique para trás, e acompanham bem o trânsito urbano. Estacioná-los é simples, mas o Fiat 126p beira o risível de tão fácil, cabendo em praticamente qualquer vaga. Os freios de ambos é a tambor nas quatro rodas, sem assistência, suficientes para pará-los com planejamento e sem pânico. Os do Willy são de duplo circuito hidráulico, ao contrário dos do Cirilo que são de circuito simples. Não sei se por esta ou outra razão, os freios do Trabant parecem melhores.  

Por dentro, eles são espartanos em acabamento e acessórios, mas o Trabant tem bem mais espaço interno (ou melhor, menos claustrofóbico), além de possuir um porta-malas que permite de fato colocar (médias) malas, enquanto o do Fiat 126p mal cabe uma mala e uma sacola. Os bancos traseiros do Fiat são tão pequenos e o espaço para as pernas é tão diminuto que ele deveria ser classificado como um 2+2 (onde o “+2” é para uso por crianças ou em trajetos muito curtos; já no Trabant, dois passageiros se sentam com mínimo conforto e considerável calor humano. Tanto num quanto noutro, o nível de ruído interno faz com que o rádio tenha bastante trabalho para se fazer ouvir, ou então que se console em ser um objeto de decoração no veículo.

E por fim, manutenção e oferta de pecas... normalmente, não é problema para nenhum deles. Há muitas pecas novas e usadas disponíveis na Alemanha, Polônia e Hungria (apesar da qualidade menor das pecas húngaras, principalmente quando comparadas às pecas de estoque antigo produzidas na ex-Alemanha Oriental). Para o Fiat 126p, recomenda-se trocar o dínamo por um alternador, e a ignição convencional por eletrônica (o alternador já está no radar; a ignição eletrônica, vai depender da disponibilidade). Para o Trabant, colocar ignição eletrônica, que já veio no Willy.

Ambos os carros são equivalentes, e oferecem bem aquilo que se propõem, guardadas as devidas limitações de projeto e da época. O Fiat é ideal para o uso no trânsito, para trajetos de até 20 Km por dia. O Trabant dá mais conforto (ou menos desconforto) para passeios mais longos, ainda que sem pressa. Lembrem-se que na época da Cortina de Ferro, famílias alemãs orientais e polonesas viajavam de férias por 2000 Km, em quatro ou cinco pessoas, bagagem pelo carro todo, e por vezes até puxando um pequeno trailer, seja num Trabant, Fiat 126p ou outro carro equivalente (como o Zastava 750 – o Fíco – que nada mais é que um Fiat 600 fabricado pela Zastava sob licença lá na Iugoslávia... na mesma fábrica de onde saiu este Fiat 126p). 

Trabant com um trailer chamado Qek Junior, e com um aerofólio de teto, para melhorar a aerodinâmica. Qualquer ajuda era bem vinda. 

Fiat 126p com um trailer polonês, similar ao Qek Junior

Qual o meu veredito? Pessoalmente, prefiro o Trabant – como diz um amigo meu, este é um carro que “oferece tanto e pede tão pouco”. Como proprietário de Fusca, posso inclusive dizer que ele é superior a um Fusca 1300 – com desempenho similar, melhor consumo de combustível, espaço interno similar e dinamicamente mais ágil. Mas a preferência é em parte mais emocional do que factual, então outra pessoa preferir um Fiat 126p ao Trabant é algo perfeitamente factível e previsível. E você, prefere qual deles?

E se vc quiser praticar um pouco de Alemão, veja os testes e dimensões, vindos de revistas da época (revista Strassenverkehr). 





















quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Cirilo, um ítalo-polaco-sérvio se juntou à família


Numa tarde fria de Março, já nos primeiros dias de pandemia aqui na Alemanha, dividia o tempo entre uma reunião desinteressante e anúncios no perigoso Ebay Kleinanzeige – um equivalente ao OLX na Alemanha. Como se eu não tivesse problemas suficientes na vida, eu procurava por um Scirocco para o meu amigo (veja o post anterior – “o carro do pescador”) quando apareceu um anúncio de um pequeno e simpático Fiat 126, da cor laranja. Mandei mensagem para o anunciante, e no dia seguinte fui ver o carro, ainda que movido pela curiosidade ao invés do desejo de fato em aumentar a coleção. 
Este é Cirilo. Um Fiat Polski 126, montado pela Zastava na Iugoslávia. Confuso, né?

Antes de falar da visita ao carro... que carro é um Fiat 126? O Fiat 126 foi o carro que substituiu o Fiat 500, simpático carro popular que – junto com as motos Vespa e Lambretta - ajudou a Itália a ter mobilidade no período pós II Guerra Mundial.  Extremamente simples, pequeno e prático tal qual o Fiat 500, incorporou algumas mudanças importantes como um motor mais potente (de 18 cv no Fiat 500 para 24 cv no Fiat 126), carroceria de estilo mais moderno e maior espaço interno, foi um sucesso ao ser lançado em 1972. E, 1973, a FSM da Polônia fabricou estes mesmos carros sob licença da Fiat até o ano 2000, incorporando ao longo dos anos diversas modificações, sendo o carro popular da Polônia, conhecido por lá como Maluch (“o pequeno”). Outros países também fabricaram o Fiat 126, como Áustria, Espanha (pela SEAT, então estatal), Sérvia (então Iugoslávia) e Austrália, tendo diversos usos e públicos alvos em seus diversos mercados – enquanto na Alemanha e Suíça o Fiat 126 era majoritariamente carros urbanos ou o segundo carro de alguma família, na Polônia, Hungria e Cuba ele foi o primeiro carro de muitas famílias.  

Aí que a história começou a ficar interessante – o carro era um Fiat 126p, portanto de fabricação polonesa. Mas ao ver o carro com mais cuidado, ele era um dos poucos que foram montados pela Zastava na Sérvia, sob licença da Fiat e FSO. O simpático carrinho tem plaqueta da FSM, emblemas Fiat 126p, pecas em grande maioria polonesas... mas o manual de instruções e mais algumas outras pecas eram de fabricação iugoslava, como os cintos de segurança e manuais de proprietário e de revisões (e devem ter mais pecas, mas estas foram as que consegui ver). O carro era de um amigo do vendedor, que o trouxe dirigindo da Sérvia até Munique, mas que o vendera pois comprara outro carro na Alemanha. O preco estava bom, mas algumas coisas complicavam o negócio. Por exemplo, ele ainda tinha matrícula da Sérvia, que não faz parte da Uniao Europeia, dificultando a transferência. Consequentemente, o pequeno Fiat Ítalo-Polaco- Sérvio (ou Iugoslavo) não tinha TÜV (teve somente o pagamento de imposto de importação), o que reservava potenciais surpresas desagradáveis numa inspeção. E como dirigir um carro (e portanto saber como ele está), se ele não poderia trafegar mais na cidade? Fizemos o seguinte acordo: se ele me entregar o carro com TÜV novo e pronto para transferência na Alemanha, eu compraria o carro incluindo os custos para fazer a inspeção. 

Foto do Cirilo, ainda com placas da Sérvia, e na cidade onde "viveu" por muitos anos.

O pequeno e valente motor bicilíndrico refrigerado a ar, de 23 pocotós.

Ainda com as placas da Sérvia

Cirilo, no dia em que o conheci. 

Alguns meses se passaram, a primeira onda de pandemia se agravara e depois diminuiu bastante, e de repente o vendedor me manda uma mensagem: “Luzzio, vou fazer a inspeção do carro agora. Quando podemos nos encontrar?”. O homem não conseguia pronunciar Luciano, mas tinha memória boa o suficiente para se lembrar do acordo. Ao ver o carrinho, tão simpático e então já inspecionado (e aprovado), pensei bem, e começamos a conversar numa proposta – até mesmo porque haviam coisas que foram trocadas que não estavam previstas quando avaliei o carro (por exemplo, o pequeno tanque de combustível, que estava furado). Conversa daqui e dali, uma voltinha no carro, chegamos num acordo e comprei o pequeno veículo. Uma semana depois, fui buscá-lo com os documentos prontos para transferência, mas as placas sérvias mesmo, para levá-lo até onde moro, e posteriormente transferi-lo. 

Cinto de segurança original Zastava, comprovando sua origem de montagem na Sérvia.

O porta-malas é tão pequeno que deveria se chamar porta-bolsa ou porta-lancheira. 

Cirilo no dia em que fui buscá-lo.

O pequeno polaco, doravante denominado Cirilo, me aguardava estacionado numa vaga de Zona Azul com um papel no parabrisas. A boa notícia foi que, com placa da Sérvia, a autoridade de trânsito local não conseguiu lavrar a multa, mas comunicava por aquele papel que o carro tinha que sair de lá em 24 horas. Saquei-o de lá, abasteci 10 litros de gasolina, e segui viagem para Herrsching, percorrendo 29 dos 43 Km com alegria até que... durante o trânsito na estrada, o motor apagou.  Nhéc nhéc nhéc nhéc... nada. No embalo, consegui pará-lo no acostamento e esperei que ele esfriasse um pouco para tentar novamente... nhéc nhéc nhéc nhéc... nhéc nhéc nhéc nhéc... e pronto! Ele ressuscitou cambaleante, mas voltara a andar! Percorri mais 5 Km até um posto de descanso, afim de reabastecer a garrafa d’água para refrigerar a bobina dele. Vinte minutos depois e um pouco menos quente, seguimos até Herrsching, parando apenas na garagem.

O sorriso da Adriana não foi tão efusivo como o meu, mas ainda assim ela se simpatizou com o carro – afinal, o Fiat 126 é tão pequeno que não dá para olhar para ele sem sorrir, ou mesmo rir de seu tamanho e jeito. Graças a uma amiga polonesa, consegui o emblema traseiro “600” que faltava nele, e no mesmo Ebay Kleinanzeige, consegui um rádio polonês para ele (AM, FM e Ondas Curtas), um retrovisor Fiat, e mais algumas peças sobressalentes de ocasião. Como andei pouco com ele, não posso passar números mais precisos, mas posso dizer que ele é perfeito para o uso urbano – ele é ágil, a direção é leve e rápida, e cabe em qualquer lugar, com seus míseros 3,06 m (vejam a foto dele ao lado de um Golf, para ter ideia do tamanho. Ele é 60 cm menor que um VW Up!). O consumo de combustível é bem modesto, por volta de 17 Km/l. Mas a velocidade máxima dele é de teóricos 105 Km/h – cheguei no máximo a 1000 Km/h no velocímetro, e pelo nível de ruído, parecia que iríamos entrar em órbita a qualquer momento. Ele é simpático e suficiente – não tem nada além do que alguém precise para dirigir de A para B, a qualidade de construção dele não é das melhores, mas condiz com a proposta do carro e a necessidade de custo muito baixo. 

E você, caro(a) leitor(a), o que achou? Conte nos comentários. Em breve, colocarei mais um post, com as impressões ao dirigí-lo em comparação com o Willy (o Trabant).  


domingo, 20 de dezembro de 2020

O carro do pescador

Tenho um amigo cujo hobby é dar ideias de pouco juízo para mim, às quais gentilmente agradeço retribuindo com outras de igual prumo. Por sugestão dele, comprei num ferro-velho paranaense um inoperante fogão à lenha que me acompanha nesta estadia germânica, desviei uma viagem de férias para ver (e comprar) um Opel Ascona em Portugal para posterior envio ao Brasil, e mandei, junto com esse Ascona, o meu querido Eusébio (um Opel Rekord branco) para uma nova vida no Brasil. Em contrapartida, eu que acabei o estimulando a comprar o primeiro e depois o segundo Monza da coleção dele, e o aticei com diversos tipos de carros que existem aqui neste lado do planeta.

Dia desses, trocávamos mensagens de voz pelo WhatsApp (estranho hábito este, pois poderíamos simplesmente nos falar pelo telefone) e disse que gostaria de mandar o Willy, meu querido Trabant, um dia desses para o Brasil, em preparação ao nosso retorno ao Brasil, que ocorrerá mais cedo ou mais tarde. Como mandar dois carros é unitariamente mais barato que mandar um só, ficamos divagando sobre qual veículo antigo adquirir e fazer companhia nessa jornada, ao que veio a ideia de um VW Scirocco 53b. Entre a divagação e o fato, lá fui eu atiçar meu amigo com diversos anúncios. Entre eles, chamou a atenção o de um carro para restaurar, de uma série especial chamada Tropic, e que estava relativamente perto de onde moro.

Em tempos de pandemia, a hora foi marcada com maior antecedência que o de costume para os próprios alemães, e fui ver o carro uma semana depois. Ele estava estacionado na rua, empoeirado e com folhas ao redor, e enquanto o proprietário não chegava, fui vendo o que era possível. Pontos de ferrugem, uma leve colisão, pneus de inverno, mas todos os detalhes no lugar – coisas típicas para um carro que foi usado, mas não moído.  O proprietário chegou, e após abrir o carro, vi que o interior bem preservado apesar da sujeira; os bancos com sobrecapas imundas, mas que ajudam na preservação das capas; ao abrir o cofre do motor, um cenário semelhante – motor imundo, mas sem grandes adaptações. A tampa do cofre não mostrava salvação e uma troca se fazia necessária.















Corrosão aqui e acolá. sujeira... nada que comprometesse, mas sinais que o carro precisa de cuidados. 

Conversando com o proprietário, antes de dar uma volta com o carro, descubro que o carro era do tio dele, que falecera semanas antes, após ser mais um a perder a batalha contra um câncer.  Saímos para uma volta, e o trambulador gasto tornava a troca de marchas mais difícil, manhosa, mas ainda assim o Scirocco se comportara muito bem. E enquanto conversava, o vendedor falava sobre o carro e de algumas lembranças do finado tio, cujo prazer era a pescaria, principalmente os lagos ao redor da cidade – a região sul da Bavária é servida por diversos lagos, sendo que a das cidades ao oeste de Munique é conhecida como região dos Cinco Lagos (Wörthsee, Starnberger See, Ammersee, Pilsensee e Weßlinger See), o que revivia lembranças boas, mas ainda doloridas pela ausência. Disse que se lembrava, ainda adolescente, quando o tio aparecera com o carro em casa, com meros seis meses de uso e comprado de um funcionário da Volkswagen. Lembrou-se das viagens do tio, das histórias de pescaria, e inclusive da última vez, meses antes de falecer, que o tio levara o carro para uma nova inspeção (a HU/AU, ou TÜV).

Como era de se esperar, negócio fechado. Dias depois, ele me entregou o carro e junto, um pacote de documentos e recibos do carro, incluindo a nota fiscal dele e o livrete de revisões. Falei para ele que o carro será restaurado, e percebi que uma lágrima se formava num dos olhos, prontamente disfarçada por ele para seguir em frente. Ao se despedir de mim, ele apenas pediu que mandasse fotos do carro após a restauração, para assim ter o conforto que aquele objeto de metal, plásticos, borrachas e vidros, de fato tenha recebido uma nova vida e assim, as lembranças do velho pescador de Gauting tenham se mantido, ainda que alhures à Bavária. Abaixo, as fotos do dia da entrega.

Scirocco entregue. 

O proprietário, sobrinho do "pescador", assinando o recibo de compra e venda. 

Hoje, com uma tampa do cofre nova, sem as capas dos bancos (que confirmaram o ótimo estado do estofamento, a despeito das manchas) e um rádio mais próximo do original, ele repousa numa garagem, aguardando a data de uma longa viagem, que será o primeiro passo de sua restauração e integração a uma bela coleção de carros dos anos 80. Aguardemos. Ainda há muitas novidades a acontecer com este belo carro. 

Banco do motorista. Sujo, mas íntegro.

Banco traseiro parece novo.

Tampa semi-nova

Adriana, muito feliz em me ajudar a trocar a tampa do carro

Scirocco já com a tampa no lugar
Missão cumprida, com visual que marca o ano de 2020.



 

 

 

 

Starnberger See Ammersee Wörthsee Pilsensee Weßlinger See (fuenfseenland.de)