Compartilhando o significado de ter um carro antigo... ou mais de um!

sábado, 11 de maio de 2024

A casa do "Seu" Araújo

Quando eu era pequeno, morávamos numa casa térrea em São Bernardo do Campo, num bairro chamado Rudge Ramos. Esta casa fora construída pelo meu avô paterno ainda nos anos 60, e era típica “casa de lote inteiro” naquele bairro à época – garagem para um carro onde cabia o “Seu Alfredo” o Opala da família com relativa tranquilidade, pátio da frente, fachada azulejada, uma sala, uma copa, uma cozinha, três quartos, um banheiro, uma edícula, um porão. A frente de revestimento primordialmente amarelo com algumas peças pretas contrastava com as lajotas cor de telha do piso, que destacavam as paredes laterais de pastilhas coloridas e o portãozinho baixo bege, que combinava com a grade da janela. Na calçada, uma árvore vivia feliz e devolvia uma sombra gostosa a quem por debaixo dela passasse. Tenho boas lembranças dessa casa e do período em que moramos lá, pois a rua era tranquila e por isso eu podia brincar na rua com outras crianças. Entre tais lembranças, estão a casa da dona Montserrat – uma amiga espanhola da minha mãe – e a casa do “Seu” Araújo. Além de morar na mesma rua que nós, o “Seu” Araújo trabalhava na mesma empresa em que meu pai trabalhava, e tinha um Dodge Polara cinza, que cabia direitinho na vaga única da frente dessa simpática residência em que morava com a família, com destaque a um painel azulejado na lateral da casa, com duas araras e uma cachoeira. Lembro-me também que o filho do “Seu” Araújo (não me lembro do nome do menino) era tão parecido com o pai que parecia uma miniatura dele. Tempos depois, “Seu” Araújo se mudou, nós nos mudamos em 1982 para outra casa, e como a vida segue, nunca mais ouvi falar dele. 

As pastilhas, a fachada, o piso... tudo virou um belo cenário para mim fantasiado de Batman, no auge dos meus incompletos cinco anos de idade. 

Ao meu lado, as minhas irmãs Sandra (à esquerda, ajoelhada) e Rosana (à direita, em pé). 

O portãozinho mencionado neste texto, que me serviu de apoio à fantasia de tentar mostrar a capa como o Batman fazia. Ao fundo, a (finada) casa da (também finada) dona Chiquinha. Era uma linda casa, que foi ao chão para dar espaço a um quadrado e feioso prédio.   

Os anos passam, e com frequência passava em frente à casa onde morei, sem parar para ver com mais detalhe a transformação daquele imóvel e dos outros na rua. Algumas casas naquela rua foram demolidas para dar lugar a outros sobrados geminados, prédios e outras edificações sem charme, outras foram reformadas e desastrosamente “atualizadas” como se tivessem sido submetidas involuntariamente a uma versão “construção civil” de Botox e cirurgias plásticas. Umas poucas resistiram com as fachadas tal qual as vi pela primeira vez. Os paralelepípedos da rua foram cobertos pelo asfalto, e muitas das árvores que moravam nas calçadas foram cortadas, incluindo a da casa amarela de número 280 – casa essa que também fora vítima das “plásticas”, tendo perdido a fachada de cor de pintinho, o portão creme, e as lajotas de cor de telha deram lugar a um revestimento cerâmico mais moderno e apático. Entre as casas que resistem, está a da dona Montserrat, trazendo um colorido e a uma vizinhança que se acinzentou. 

Ontem à noite, usufruindo de alguns momentos sozinho, retornei à rua onde vivi até os meus sete anos de idade. Caminhar por lá foi como rever o passado, mas ao mesmo tempo ver que aqueles tempos de infância ficaram bem longe. Além da simpática casa da dona Montserrat, está o Teatro Lauro Gomes (que na minha infância era chamado “Anfiteatro Prefeito Lauro Gomes”, e nada mais era que um teatro cinza e largado no bairro), e alguns prédios cujos negócios se encerraram mas felizmente não se ousou pintar as fachadas pastilhadas ou revestidas com pedras. A casa onde morei, no número 280 da Rua Helena Jacquey, hoje é a sede de um salão de beleza; segundo a funcionária que trabalha lá, o porão continua lá e é “enorme e meio sinistro” por ser totalmente escuro; a cozinha que existia lá desapareceu, junto com a garagem onde o carro da família dormia, mas a muito da casa original parece ainda existir, como a edícula ao fundo, os três quartos (agora são salas de procedimentos estéticos alheios ao meu conhecimento) e a grade da janelona da sala, remetendo aos tempos em que havia um portãozinho, uma árvore, cores e paralelepípedos. Saí dessa breve conversa com saudade daquela casa, da minha infância, e de um tempo em que a vida era mais simples e as pessoas conversavam entre si. E a casa do “Seu” Araújo? Ela está em pé, mas muito diferente daquela que conheci – cinza, sem graça, anacrônica, mas felizmente o mural de azulejos felizmente continua lá, resistindo ao tempo e mostrando que a vida pode ser mais colorida.

O mural azulejado da que já foi a casa do "seu" Araújo. Foto do dia 10 de Maio de 2024.