Compartilhando o significado de ter um carro antigo... ou mais de um!

domingo, 29 de maio de 2016

Divirta-se (ou melhor, Viel spaß), Elke!

Chegara à conclusão que "os olhos foram maiores que o estômago", metaforicamente exemplificando a dificuldade em manter três carros e uma moto num país longínquo e com hábitos, leis e recursos, tão diferentes dos que eu conhecia em outra realidade. O custo doeu, o tempo se fez escasso e as alternativas disponíveis eram todas demasiado custosas para manter uma pequena frota germânica rodando adequadamente, e consequentemente assumi a alternativa de reduzir a frota. Elke, a tão simpática Trabant Kombi, foi escolhida para mudar de dono. 

O Frank (Wartburg) foi (de novo) para a oficina, novamente por motivo simples mas que requeria mão de obra e espaço especializados, para ajustar a ignição, limpar carburador e substituir o tanque com ferrugem por outro em melhor estado; o Eusébio (Opel Rekord) mostrara que seu motor dara o "canto do cisne" e estava em últimos dias de vida pré-retífica. E a Elke, ah, a Elke... sua ignição teimava em seu comportamento temperamental, e também por ter menos de 30 anos ela não podia trafegar em qualquer lugar em Berlim, por não possuir o "selo verde" de baixas emissões - algo impossível num carro com motor dois tempos; dirigí-la nas estradas era possível mas também um bom exercício de paciência, já que não passava dos 100 Km/h, sem antes ter muito sofrimento para atingir essa velocidade. Então, mesmo com o coração sofrendo a cabeça (e o bolso) falaram mais alto e a anunciamos, por aproximadamente o mesmo que ela me custou. 

Em menos de uma semana houve uma porção de interessados que ligaram e mandaram mensagens - desde especulativas oferecendo uma ninharia por ela, até uma pessoa que quis vê-la. Combinamos para o sábado, e logo a avisei que iria buscá-la no estacionamento - intimamente torcia para que ela funcionasse direito e que a ignição se comportasse adequadamente. Sexta-feira a noite, fui ao estacionamento, limpei as velas, mexi nos cabos e... nada dela ligar. Fiquei irritado, falei que a venderia por qualquer valor se ela continuasse assim e... de novo, nada. Respirei fundo, olhei para ela e disse: "Elke, está bem. Se você funcionar direitinho eu não te vendo mais". E ela ligou como se nada tivesse acontecido... nem tive tempo de ficar pensando muito a respeito desse comportamento - fechei o capô e segui viagem até o prédio onde moro. No caminho, o carburador insistia em não querer sustentar marcha lenta, e a fumaça azulada proporcionava um perfume pouco apreciado pelos motociclistas e motoristas dos carros conversíveis que compartilharam conosco do trânsito do centro da cidade. Ainda assim, ela atraía sorrisos e acenos das pessoas, que ou viveram na DDR ou então se simpatizam com os Trabant. 

Nada como um bom banho...
No sábado, preparativos para a venda - uma boa ducha, uma aspiração interna, separar as peças de reposição que a acompanhariam caso passassem para outras mãos... e esperar pelos potenciais compradores. Conversamos, afinal a possibilidade de seguirmos por estradas separadas era real. Ela parecia saber disso, e ainda assim se sentir feliz por tudo que passou até o momento. Estava bem, e mantinha aquela carinha rabugenta e ao mesmo tempo sorridente que só um Trabant sabe fazer. Enquanto removia umas poucas manchas de graxa na pintura, via lascas e riscos na sua pintura - "marcas de uma vida que segue", parecia dizer.  Saímos do posto, e estacionamos mais uma vez na garagem a qual morou por alguns meses por conta de seus problemas de saúde mecânica - desta vez, porém, estava saudável e tranquila, e ficou contente ao receber uma rápida limpeza no painel e volante, para tirar o pó e oleosidade. Prometi a ela que não a venderia para quem a subestimasse pechinchando além da conta, ou para algum comprador que só quer ficar na moda e a negligenciar. Achava estranho uma mulher ter entrado em contato e tema por ser uma dessas pessoas "da modinha" que não teriam noção que é preciso abastecer com gasolina e óleo 2 tempos na proporção certa, o que condenaria Elke a uma troca de motor ou pior - a se transformar em objeto de exposição em algum restaurante para turistas.

Hora e meia depois, chegaram os potenciais compradores - a mulher com quem conversara e o esposo dela. Ambos pessoas nos seus 50 e poucos anos, que viveram na DDR e viram os Trabant serem vendidos novos. Eles a viram, admiraram-se ao saber que tenho um Wartburg e uma Schwalbe mesmo não sendo alemão, e gostaram que a Trabant 601 Kombi tinha o nome Elke. Foi feita a proposta - e uma contra-proposta. E fechamos negócio. Neste momento fatídico, estava chegando ao fim este capítulo na história dela e se iniciava uma nova página. Todos pareciam felizes - a nova família de Elke, a Adriana (que vira que a peruinha estava indo para uma família que cuidaria dela com carinho), e a própria Elke que parecia ter se identificado rapidamente com aquele simpático casal e parecia prever muitas aventuras e uma vida melhor. 

Negócio fechado - Elke passaria a partir de então a morar em Potsdam.
Uma das várias "cicatrizes de uma vida intensa" da Elke. Ao fundo, a nova proprietária (e tutora) e eu, assinando os documentos.
Recebi o dinheiro, eles receberam os documentos, olhei para a Elke segurando o choro de uma despedida dizendo "obrigado, minha querida! Tenha uma ótima vida daqui em diante!". No meu imaginário, pareceu-me tê-la visto responder com certa emoção e alegria com um "obrigado! Agora a vida segue. Divirta-se, pois eu certamente irei me divertir muito!".  
E numa nuvem azulada muito leve, Elke partiu para um novo capítulo de sua intensa vida. 
Com um dinheirinho na conta-corrente e um vazio no peito, Adriana e eu fomos almoçar - paguei-lhe a tão esperada pizza que ela tanto me cobrou, o que a animou sobremaneira. O tagliatelle quatro queijos que comi estava muito bom, mas curiosamente não consegui sorrir direito...


Acho que ela ficou contente...
... e enquanto isso, eu me acostumava com a ausência da minha "amiga de Duroplast".
É, o tagliatelle estava gostoso...
Com a partida dela, ganho um fôlego para me dedicar ao Frank e ao Eusébio (além da Schwalbe, a motinho) e consequentemente ter dois carros confiáveis para viagens e trajetos diários. Um dia, quando as coisas estiverem mais estabilizadas e confortáveis, procurarei e comprarei outro Trabant, provavelmente em melhores condições. Fico com a eterna imagem de um carro simples até demais, mas eficiente e simpático, que merece respeito e reverência. Enquanto esse dia não chega, fico com esse porta-copos, como a lembrança que tive a alegria de conhecer a "Elke Wunderbar". 

Viel spaß, Elke! 









domingo, 22 de maio de 2016

Wilma, uma Caravan em renovação

A vida segue, como e onde quer que estejamos. E enquanto sigo nesta estadia berlinense, a Wilma prosseguiu em processo de ressurreição - digo isso ao invés de restauração pois sob o aspecto econômico ela não seria um projeto viável, mas com tantas peculiaridades ela mereceu o resgate à antiga glória. Foi um ano de restauração, e que agora está na fase final de ajustes mas o resultado ficou ótimo até o momento. A foto de abertura deste post já diz bastante...
Wilma, em processo final de montem
 As fotos abaixo mostram como nos vimos pela primeira vez. Judiada, mas ainda em pé, parecia pedir que alguém a adotasse. Pois foi aquele bagageiro o que me cativou...

A "carinha de dó" de Wilma.
Wilma em outro ângulo.
Besta foto dá para ver que tudo embaixo dela foi restaurado ou substituído. O assoalho estava em ótimo estado, e a pintura ficou tão bonita que chegou a dar dó de pensar que esse trabalho não ficaria exposto... 

Suspensões, diferencial, freios... tudo revisado ou substituído conforme a necessidade.
Espelho dos freios devidamente galvanizado, bandejas e elementos da suspensão gabaritados e pintados a pó, terminais substituídos... um carro novo, de novo.
O motor dela, barulhento que estava, foi aberto e acabou por ser todo retificado já que não tinha apenas "uma folguinha aqui e um vazamento ali". Com isso, já se aproveitou e fez-se a pintura e galvanização de todas as peças de acordo com o padrão GM da época. O câmbio automático (TH-180) também foi aberto e todo revisado, com troca de kit e revisão do conversor de torque - afinal, se depois de anos de tratamento negligenciado, nada mais justo que deixá-lo à altura do restante do carro.

Motor da Wilma, cansado mas ainda trabalhando, recebeu o tratamento devido.

Peças pintadas, galvanizadas... 
... e motor retificado, pintado com a cor original.
Motor no lugar, com todos os acessórios.
Outras peças também receberam galvanização - além dos parachoques e respectivas garras, todas as peças que eram galvanizadas durante a fabricação do carro receberam novamente este tratamento. E também houve um cuidado em não se "superrestaurar", mantendo as próprias falhas de acabamento que a GM tinha à época, como o espirro de tinta preta nos suportes de radiador, sobre a pintura do carro. 

A montagem seguiu dando forma à Caravan.


Emblemas e outros detalhes foram dando mais vida a ela conforme eram montados. 

Visor de marcha do câmbio automático, que fica sobre a coluna de direção.
Neste momento, o interior já está todo montado e faltam pequenos (mas importantes) detalhes para serem concluídos, como a instalação dos farois de milha e de neblina, completar a revisão elétrica, e ajustar o motor e a suspensão. Gostaria de tê-la visto pronta e poder dirigí-la já sem nenhum ajuste a fazer; no entanto a experiência mostra que é melhor conviver com o atraso do que com o trabalho mal feito, portanto deixo para vê-la (e dirigí-la) para a próxima vez eu retornar ao Brasil, o que será assunto para outro post. Aproveito e deixo o meu imenso agradecimento ao meu sobrinho, Felipe, por ter coordenado este trabalho junto aos ótimos profissionais Kot (funilaria, pintura, estofamento e elétrica) e Fernando (mecânica), a quem também agradeço pelo trabalho até o momento.

Aqui está ela, quase pronta. Esta senhora está ficando linda...




domingo, 1 de maio de 2016

Elke precisando de vitaminas

Elke, a pequena peruinha de Zwickau, consegue ser grandiosa em diversos aspectos - desde seus espaços escondidos onde podem ser armazenados objetos diversos, até o seu comportamento de "amante argentina" que requer boa dose de atenção e de finanças pessoais. 

No dia 22 de dezembro de 2015, ela que trafegava tranquilamente decidiu ficar fraquinha, sem força para subir uma leve rampa ou acompanhar o trânsito da cidade. Percebi que o cilindro número um estava morno, enquanto que o número dois estava quente, na temperatura normal de trabalho. Depois de muitas pesquisas e algumas consultas, o primeiro diagnóstico - a ignição está falhando. Troquei cabos de vela, e mesmo assim se confirmou haver centelhas. Próximo passo era então trocar a junta de cabeçote, problema típico dos motores de Trabant, cuja junta quebrava e deixava escapar compressão. Tirei a capa de refrigeração do motor e realmente o cilindro parecia bem sujo, indicando vazamentos. 

Comprei peças, programei-me para trocar a junta de noite (após o zelador do condomínio voltar de seu compromisso noturno, e com isso não me encher a paciência) e, algumas noites depois a junta estava trocada... mas Elke continou igual. Próximo passo? Trocar a junta inferior do cilindro, que também estava muito suja. Sim amigos, comprei mais peças, ferramentas (como um torquímetro, cinta para instalação de aneis de pistão, chaves combinadas... e um extintor de incêndio, pois sabe-se lá o que poderia acontecer). Num domingo, tirei o cilindro e trouxe-o para o apartamento, afim de limpá-lo e trazer novos odores e cores ao meu lar. Sim, cores de graxa suja, poeira impregnada, óleo de limpeza (é, mais dinheiro gasto...), e a cor marrom que enfeitara então a bacia comprada especialmente para a finalidade.


Cilindro 1 (lado direito) mais sujo que o cilindro 2 (esquerda)
Troca da junta de cabeçote do cilindro 1
"Pé" do cilindro 1 bastante sujo de graxa, indicando possível vazamento.
Camisa e cabeçote do cilindro 1 removido. 


Cabeçote e camisa já limpos. Saiu tanta sujeira que acho que ficaram uns 100g mais leves. 


"Vista da oficina noturna". Nota: a temperatura média da garagem era de 7ºC a noite. 
Por alguma razão que a própria razão desconhece, tive a triste ideia de tentar tirar o pistão da biela, sem haver necessidade para tal. Parei no meio do caminho, mas não consegui colocar o pino do pistão de volta no lugar, então fui alguns dias depois numa loja de materiais de construção e ferramentas e comprei um parafuso comprido e porcas, e trouxe o pino de volta no lugar de onde eu não deveria tê-lo tirado.  
Vista panorâmica do motor sem o cilindro 1 e com metade do pino do pistão para fora.
Pistão do cilindro 1, com o pino para fora.
Instalação do pino do pistão, já no lugar correto. 
Compressão do cilindro 1. No limite mínimo, mas ainda no limite. 
Cilindro instalado, mas problema persistindo... já cabisbaixo e macambuzo, decidi medir a compressão dos cilindros, esperando pelo pior. Felizmente, apesar da pressão um pouco baixa ela ainda estava dentro do especificado (no limite mínimo, fato, mas ainda dentro do aceitável). Cocei a cabeça, estranhando muito aquilo... só restava mesmo ser ignição. Neste interim, a bateria pediu aposentadoria por tempo inativo, tendo uma nova bateria no lugar.

Motor quase montado

Eis que numa noite, conversando com um amigo que acabou vendo o carro, ele apontou para um grupo de fios de aterramento e disse para eu ver aquilo lá, pois não parecia direito. Pois bem, como parte do plano eu troquei as bobinas e também dei uma mexida naqueles fios... e Elke voltara à vida! Wunderbar!!! Animado após três meses de errante investigação e tentativas frustradas de solução do problema, montei todos os periféricos do motor de volta, e no dia seguinte guardei o pequeno monte de ferramentas e peças que havia dentro dela e levei-a para o estacionamento. A força havia voltado, como se ela tivesse tomado as vitaminas corretas, sentindo-se novamente disposta. O comportamento dela foi muito bom, acompanhando o trânsito e animando os berlinenses orientais que a viam circular pela cidade naquela fria noite de fevereiro. 


Tudo sujo, mas funcionando!

Tudo no seu devido lugar, e com filtro novo.
O pequeno carburador, que receberá um tratamento decente. 
Trafegando com a Elke na Leipziger Strasse. 

O carburador teimou em não manter a marcha lenta, provavelmente sujo de tantas intervenções no motor e do tempo parado, mas ela seguiu bem até o lado ocidental de Berlim, passando pelos tradicionais pontos turísticos e "atravessando o muro" ou melhor, o local onde jaz a lembrança que toneladas de concreto e aço separaram a cidade e a vida de tantas pessoas em mundos tão distintos. Chegamos felizes à garagem, onde ela ficou guardada e esperando a chegada da primavera e a certeza de tempos sem neve e gelo nas ruas. O carro de uso diário ficou contente também ao saber que voltaria a "dormir" na garagem, e em muito breve receber um merecido banho. 

Fazia frio, garoa, mas ela (até que) se comportou bem. 

Elke na sua "vaga cativa", sã e salva.
"Rudolf", o carro de uso diário, feliz em poder usar a vaga novamente. 
Amigo leitor, você acha que acabou por aqui? Rá! Errou!!! Três semanas depois, quando decidi colocá-la para rodar o problema voltou, e-xa-ta-men-te igual a antes... pelo menos agora dá para se concentrar na ignição como solução do problema. E tem outra - acabei esquecendo de fechar a torneirinha de combustível e portanto transbordou gasolina pelo carburador, logo o que não estava bom deve ter ficado ainda pior. Acho que a Elke vai para o médico antes do que eu imaginava.